RIO - Presente em pães, massas, biscoitos, bolos, o trigo é um cereal tão integrante da alimentação de diversas populações no mundo que é difícil pensar numa sociedade sem ele. Para ser ter ideia, a Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) da ONU estima uma produção mundial de 690 milhões de toneladas este ano. Apesar de uma importante fonte de nutrientes, o trigo carrega a proteína do glúten, prejudicial ao organismo de um número crescente de indivíduos. Aveia, cevada e centeio também contêm esta proteína, que pode levar à chamada doença celíaca, um distúrbio autoimune. Além de lidar com a não absorção do glúten, os pacientes se deparam com mais um desafio pouco conhecido: o risco de desenvolver outras doenças autoimunes, tais como artrite reumatoide, diabetes tipo 1 e esclerose múltipla. O pior é que o caminho oposto também pode ocorrer.
Há pouco menos de duas décadas, imaginava-se que uma em cada dez mil pessoas no mundo tinha a doença celíaca. Nos anos 2000, a Universidade de Maryland, nos EUA, mostrou que ela é bem mais comum, e aparece em 133 a cada dez mil na América do Norte. No Brasil, são 400 por dez mil. A compreensão da doença levou à melhora do diagnóstico, assim como ao entendimento de seus outros riscos associados.
— A comorbidade (enfermidades relacionadas) da doença celíaca com outros distúrbios autoimunes tem sido descrito há algum tempo. Mas agora que conseguimos entender o genoma humano, ficou claro que estas comorbidades se devem a “assinaturas” comuns. Também existe uma corrente crescente de pensamento sugerindo que doença celíaca não tratada pode levar a outras doenças autoimunes — explicou um dos principais especialistas no tema, Alessio Fasano, coordenador do Centro de Pesquisa para Celíacos da Universidade de Maryland.
Em pessoas com doença celíaca, o glúten desencadeia uma reação autoimune que ataca o próprio intestino, incapaz de absorver a substância. Fasano explica que além da genética e do “gatilho” ambiental (no caso do celíaco, o glúten), descobriu-se que um terceiro elemento-chave está na gênese das doenças autoimunes: a perda da função de barreira do intestino, que acaba permitindo a entrada de substâncias nocivas no organismo.
Doença celíaca, diabetes tipo 1, esclerose múltipla, artrite reumatoide e doenças inflamatórias do intestino têm em comum uma significativa “permeabilidade do intestino”, causada geralmente por níveis anormais da proteína zonulina — que modula as junções entre os enterócitos, as células do intestino delgado. No caso da doença celíaca, Fasano explica que o próprio glúten leva à produção exagerada desta proteína. Por enquanto, não foram descobertas substâncias associadas às outras doenças autoimunes, que, por associação, também poderiam levar ao aumento da zonulina.
Dieta sem glúten para paciente de doença autoimune
Ainda são poucos os estudos, mas a experiência tem mostrado que pacientes com doença autoimune podem se beneficiar de uma alimentação isenta de glúten.
— Há pouca evidência de que a dieta sem glúten pode ser benéfica para além dos celíacos. Mas há alguns relatórios, inclusive, sobre pessoas com esclerose múltipla ou diabetes que tiveram bons resultados — afirmou.
A dermatologista e reumatologista Sueli Coelho, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj, afirma que pelo menos 30% dos pacientes com doenças autoimunes de pele, como dermatite herpetiforme, também têm doença celíaca.
— Nestes casos, o tratamento passa a ser o mesmo da doença celíaca, associada a uma medicação. A melhora é significativa — afirma.
Outras enfermidades, como a psoríase, eritema escamoso e artrite reativa, também podem estar associadas à doença celíaca.
— Os mecanismos imunológicos são aprimorados a cada dia. Antes não se ligava a doença da pele à do intestino, mas hoje já investigamos a doença celíaca neste quadro — explica.
Especialistas, entretanto, são enfáticos ao afirmar que os riscos do glúten não devem levar qualquer um a abandoná-lo. Cerca de 1% da população é celíaca. Enquanto isto, os cereais são fontes importantes de fibras e outros nutrientes.
— Quando a pessoa não tem doença celíaca, o glúten é bastante saudável, ajuda no trânsito intestinal e melhora a digestão — afirma o nutrólogo e médico consultor da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad), Hélio Osmo, que ainda dá um conselho para os celíacos: — Eles passam por muita dificuldade na dieta. Ao não encontrar produtos específicos para celíacos, o melhor é evitar os industrializados, porque grande parte contém glúten.