E também quanto e como você come. Os alimentos podem
ajudar ou prejudicar sua saúde. Mas não é recomendável
sentar-se à mesa como se vai a uma farmácia ou lançar-se
a excessos como um condenado em sua última refeição.
O prazer do equilíbrio é a chave de tudo
Anna Paula Buchalla
Montagem sobre fotos Pedro Rubens |
Quando o francês Jean Anthelme Brillat-Savarin cunhou, em 1825, a expressão "diga-me o que comes e eu te direi o que és", referia-se, sobretudo, aos prazeres de uma boa refeição. Em seu tratado de gastronomia A Fisiologia do Gosto, a primeira obra sobre a relação do homem com a comida, ele dizia que a elaboração de um novo prato causava mais felicidade à espécie humana do que a descoberta de uma estrela. Pouco mais de um século depois, na década de 1950, o sabor de uma boa refeição ganhou um tempero de culpa com a descoberta de que a gordura, em excesso, trazia malefícios à saúde. De lá para cá, uma série de estudos vem contribuindo para medicalizar o pão (e a carne, e a massa, e o doce) nosso de cada dia. Para o bem e para o mal. Alguns alimentos passaram a ser vistos como venenos e outros, como remédios. Entre os dois extremos, está você, fazendo a conta de quantas calorias vai ingerir no almoço, imaginando se suas artérias entupirão de vez com a feijoada programada para o sábado e pensando se, afinal de contas, não seria melhor evitar beber o quinto copo de vinho tinto da semana. É claro que as descobertas de médicos nutrólogos e nutricionistas são para ser levadas a sério. Mas não é igualmente evidente que elas não devem servir para criar neuroses. Você é, sim, o que você come – desde que entenda que, quando nos sentamos à mesa, o fazemos por motivos que vão além da nutrição pura e simples. Entre eles, degustar iguarias, compartilhar um grande momento com os amigos, participar de rituais e cerimônias familiares e até explorar novas culturas (mesmo que isso signifique não ultrapassar os limites de um frango xadrez). Tudo isso se perde quando você começa a encarar uma refeição como uma ida à farmácia. Qual a saída? Ter uma dieta equilibrada – em qualidade e quantidade. Tão equilibrada que lhe dê a chance de, vez por outra, cometer alguns "crimes" nutricionais. "A manutenção da saúde deve ser uma conseqüência, e não o único objetivo do ato de comer bem", diz o americano Michael Pollan, autor do livro In Defense of Food (Em Defesa da Comida), que está na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times.
Pollan está certo, mas é um radical, digamos, livre demais. Ele chega a afirmar que "a nutrição está na mesma posição que a cirurgia no século XVII: é uma ciência jovem e promissora, da qual você não quer ser a cobaia". Menos, Pollan. Repita-se que não se trata de jogar no lixo as descobertas feitas ao longo do último meio século. Já está provado que, das dez doenças que mais matam no mundo, cinco estão diretamente associadas a uma dieta de má qualidade: obesidade, infarto, derrame, diabetes e câncer – sobretudo o de mama, o de próstata e o de intestino. "Quem quer que seja o pai de uma doença, a mãe foi uma dieta deficiente", diz o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). Não é preciso ser um freqüentador compulsivo de spas de emagrecimento para perceber que basta uma semana de alimentação regrada, frugal e saudável para o organismo funcionar melhor. O hálito melhora, o cabelo fica mais sedoso, a pele mais viçosa. Surge o ânimo para acordar mais cedo e, por que não, fazer inclusive uma caminhada. "A boa alimentação favorece o metabolismo, o sono e a regularidade do intestino e controla os radicais livres, as moléculas responsáveis pelo envelhecimento celular", diz a nutricionista Cristina Menna Barreto, de São Paulo. Até o nosso humor pode ser modulado pela alimentação. Certos nutrientes têm efeito direto sobre a produção ou a inibição de determinados neurotransmissores, responsáveis pelas oscilações do estado de espírito. "Uma pessoa que acorda, toma uma xícara de café e não come nada até a hora do almoço tem maior probabilidade de ficar com o humor azedo", diz o nutrólogo Daniel Magnoni, do Hospital do Coração, de São Paulo. Existem, ainda, estudos que mostram a relação entre deficiência de ácido fólico e depressão. E uma pesquisa publicada recentemente noBritish Journal of Psychiatry indica que o uso de determinados suplementos nutricionais reduz a ocorrência de problemas de comportamento – entre eles a agressividade.
Muitos dos alimentos hoje demonizados foram essenciais para a evolução do homem. O consumo de carnes vermelhas garantiu a sobrevivência de nossos ancestrais em tempos de escassez de comida. Estocada sob a forma de tecido adiposo, a gordura animal representava a principal fonte de energia do pessoal das cavernas. Também se devem à dieta carnívora as proteínas que permitiram ao homem, entre outras coisas, criar o alfabeto, fabricar papel, inventar a tipografia e escrever livros que condenam... a carne. No século XVI, a inclusão da batata, tubérculo oriundo da América, no cardápio europeu possibilitou o ganho calórico que resultaria na Revolução Industrial. Mas nossos antepassados obtinham do mel e das frutas a quase totalidade do açúcar que constava de sua dieta. O doce vilão, que está na origem dos distúrbios metabólicos mais nocivos, não era onipresente como hoje. No entender de pesquisadores da história da alimentação, o gatilho para a epidemia de obesidade dos Estados Unidos, que se alastrou pelo mundo, foi justamente um açúcar: o amido de milho. "A adoção do milho é o fenômeno alimentar mais importante – e preocupante – da modernidade", diz o historiador Henrique Carneiro, autor do livro Comida e Sociedade. Dessa substância são fabricados os adoçantes e xaropes presentes em boa parte dos produtos industrializados, como os refrigerantes.
O derradeiro jantar
Stephane de Sakutin/AFP
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Gordon Ramsay: rosbife dos tempos da infância |
A fotógrafa americana Melanie Dunea lançou a seguinte pergunta a cinqüenta grandes chefs: "Se você fosse morrer amanhã, qual seria sua última refeição?". Em seu livro My Last Supper (Meu Último Jantar), foram poucos os que optaram por trufas, caviar e foie gras. A maioria escolheu refeições absolutamente simples. Gordon Ramsay, apresentador dos programas Hell’s Kitchen e Kitchen Nightmares,decidiu-se por rosbife com yorkshire pudding. A carne assada com molho, acompanhada de pudim salgado, é um clássico dessa licença nada poética chamada culinária britânica. E era um prato freqüente na mesa da família do escocês Ramsay. Jamie Oliver, chef inglês e também apresentador de programas de culinária, optou por spaghetti all’arrabiata e, de sobremesa, pudim de arroz. "É impressionante quão simples, rústica e despretensiosa é a maioria das seleções", escreve o chef Anthony Bourdain, no prefácio do livro. Ele próprio comeria em seu último jantar ossobuco com salsinhas e salada de alcaparras com torradas de baguete. "Há sempre uma volta às coisas da infância ou aos sabores regionais. A palavra ‘mãe’ é citada em pelo menos um terço das vezes", observou Bourdain em entrevista à revista americana Time. A lembrança de um prato não se resume ao seu sabor. Remete também a tempos felizes.
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Ah, os refrigerantes, as batatas fritas, os hambúrgueres... Se eles não fossem tão gostosos, não teriam ganhado o planeta. Já as frutas, as verduras, os legumes... Bem, a verdade nua e crua (ou cozida, como queira) é que são alimentos difíceis de engolir para oito em cada dez pessoas (e para dez em cada dez crianças). Pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, desvendaram os mecanismos cerebrais que tornam uma fritura mais apetitosa do que um rabanete. Eles descobriram que as comidas gordurosas ativam uma região cerebral conhecida como córtex cingulado, a mesma que se acende quando recebemos um carinho ou sentimos o cheiro de um perfume.
A educação dos sentidos, no entanto, não é tão difícil como parece. Há uma máxima antiga segundo a qual "as doenças não afetam quem sabe o que comer, o que não comer, quando comer e como comer". Isso está ao seu alcance. A chave, aqui, é cultural. Gostar de vegetais implica educar o paladar – e antes dele, óbvio, o cérebro. Na verdade, trata-se de uma reeducação. Foi comprovada a existência de um instinto natural de seleção da comida. Um estudo realizado nos Estados Unidos é particularmente interessante. Os pesquisadores entregaram a crianças de péssimos hábitos à mesa dez tipos de alimentos naturais. Ao longo de uma semana, privadas de sua dieta habitual, elas conseguiram combinar tais ingredientes de forma a construir uma dieta variada e saudável. Não se recusaram a comer nada, nem repetiram sempre o mesmo prato. A capacidade de adestrarmos nosso paladar de modo a extrair prazer de comidas antes intragáveis também ficou evidente graças ao inglês Jamie Oliver, aquele chatinho dos programas de televisão. Há três anos, ele realizou uma campanha para banir as porcarias dos lanches e refeições servidos às crianças nas escolas públicas inglesas. Oliver ajudou a promover mudanças drásticas nesse cardápio – a merenda "junkie" à base de nuggets e salsichas cedeu lugar a saladas, frutas e receitas italianas. Tudo isso acompanhado do desafio de agradar aos estudantes. Deu certo. Em poucas semanas, o paladar da moçada, "mascarado" pelo consumo abusivo de gorduras artificiais, ficou, como dizer, menos inglês.
Se ainda não veio à sua cabeça a expressão, aqui está ela: bom senso. Pois é, nesse caso não dá para variar. E bom senso significa não exagerar nem no consumo nem na privação. Quer um exemplo? A exclusão de carne vermelha da dieta é responsável por carências de ferro e vitamina B12, nutrientes fundamentais para o organismo. Mais: de nada adianta seguir cegamente dietas como a japonesa e a mediterrânea, tidas como as mais saudáveis, sem levar em conta que você não vive no Japão ou às margens do Mediterrâneo. Uma dieta para ser equilibrada e prazerosa tem de se combinar ao ambiente em que se vive e à genética de cada um. Coma de tudo um pouco e tente transformar o ato de comer numa experiência mais agradável do que se restringir a uma porção de brócolis ou se entupir de frituras. De vez em quando, dá vontade de comer um hambúrguer? Não se prive desse prazer. Coma com calma, sem tanta gordura pingando no prato. Esforce-se para que pelo menos uma de suas refeições diárias seja uma experiência estética e, com o perdão da palavra, sinestésica. Tente melhorar a apresentação dos pratos, capriche na combinação dos alimentos e no seu colorido. Você dificilmente (e põe difícil nisso) se tornará um Marcel Proust, que escreveu o primeiro romance do monumental Em Busca do Tempo Perdido a partir das evocações proporcionadas por uma madeleine – mas, decerto, será alguém mais saudável e feliz.
Lailson Santos |
Lailson Santos |
Lailson Santos |
Fabiano Accorsi |
Fotos Lang, Alfredo Franco, Carlos Cubi, Gustavo Arrais, Oscar Cabral, Claudio Meletti |