Antonio Carlos Lopes
Quando nos reportarmos a um passado não muito distante, lembramo-nos de como era habitual a existência de uma relação muito forte entre o médico, o paciente e os seus familiares. Aquele médico da família, que acompanhava todos os seus integrantes ao longo da vida, não existe mais. Ou restam pouquíssimos. E, infelizmente, depois do avanço da tecnologia, alguns passaram a admitir que o computador e a ressonância magnética, por exemplo, desempenham papel mais importante do que a atuação do médico. Qual a necessidade de conversar com o paciente quando é possível colocá-lo dentro de uma máquina e enxergá-lo por dentro?
Não nos podemos esquecer de que a ressonância magnética não é capaz de indicar, por exemplo, as condições sociais e culturais do doente. Também não é capaz de diagnosticar tudo o que acontece com ele. Cito como exemplo casos de síndrome do pânico: o indivíduo geralmente reporta um quadro de doença instalada e profundo mal-estar, mas os exames não indicam nenhuma anormalidade. Nesse caso, o bom diagnóstico é feito somente pela anamnese e por meio da relação entre o médico e o paciente.
A tecnologia avançada, a despeito de todos os seus benefícios, acabou colaborando para o esfriamento dessa importante interação. E, por acreditar profundamente nisso, tenho, pessoalmente, procurado trazer à baila a discussão desse tema em congressos e campanhas no âmbito do associativismo e da academia.
A busca pela valorização do envolvimento entre o médico e o paciente trouxe também para a superfície o debate sobre a importância do humanismo na prática médica. Acima de qualquer atitude, o médico precisa focar menos na doença, na tomografia, na ressonância magnética e mais no doente, que é a razão da sua existência profissional. Nestes tempos de grande avanço econômico e tecnológico, nada substitui o tratamento humanizado e nada é mais importante do que a medicina à beira do leito.
A relação médico-paciente é uma interação que envolve confiança e responsabilidade. Caracteriza-se pelos compromissos e deveres de ambos os atores, permeados pela sinceridade e pelo amor. Sem essa interação verdadeira não existe medicina. Trata-se de uma relação humana que, como qualquer outra do gênero, não está livre das complicações. Muitas vezes o indivíduo que está doente já procurou diversos profissionais que, em inúmeros casos, nem sequer olharam para o seu rosto. É uma das dificuldades que precisam ser enfrentadas no momento da abordagem inicial.
A medicina não é apenas ciência. É também arte. Frequentemente o paciente chega ao consultório do médico e não consegue dimensionar o quanto aquele momento é importante na sua vida. Sai do escritório correndo, muitas vezes esquece o que precisa dizer ao médico, chega nervoso porque precisa voltar ao trabalho. Isso é bastante comum, principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS). Aí o problema se torna mais complicado ainda, porque cada consulta não passa de 15 minutos. Às vezes não há sequer cadeira para o doente se sentar.
Nossa obrigação, como médicos, é estabelecer uma interação com o paciente, não importam sua classe, sua cor ou seu credo. Esse profissional precisa estar pronto para enfrentar as adversidades, quando o paciente contesta. E este está exercendo o seu direito. Também há situações em que o doente chega acompanhado de uma terceira pessoa que adquire papel de intermediária e, por conseguinte, interfere na relação médico-paciente. Ainda em outro momento, o paciente chega visivelmente aborrecido, com as mãos geladas, nervoso, porque já aguarda na sala de espera há algum tempo. Com tantas dificuldades, como o médico faz para criar um ambiente agradável e propício para receber o doente e interagir com ele? Sem esse contato não é possível estabelecer um diálogo e desenvolver uma anamnese adequada. Precisamos lembrar-nos de que 70% de todos os diagnósticos são advindos da anamnese.
Qual seria, então, a melhor maneira para permitir a fluidez dessa relação médico-paciente? No meu consultório, uma das estratégias é buscar aproximação por meio de temas do cotidiano, como o futebol. Conversas sobre a profissão também ajudam a relaxar o doente. Após cerca de 15 minutos, ele está totalmente tranquilo, o que se percebe pela respiração mais lenta e pela mudança no semblante. Esse é o momento ideal para o início da anamnese. O que é necessário é desarmar o paciente quando ele se encontra agressivo, cansado, com medo ou simplesmente descrente, por já ter procurado diversos outros profissionais que não souberam ouvi-lo e respeitá-lo.
É tempo de recuperar as nossas raízes, de resgatar o bom e velho médico e as suas principais qualidades, sem, é claro, abrir mão de toda a modernidade a que temos direito. O resgate da humanização, tão bem inserida naquele contexto de antigamente, deve pautar sempre a prática da medicina, com o principal objetivo de oferecer assistência digna e de qualidade à população.
Para ser médico é preciso gostar de gente. Saber que não existem doenças, e sim doentes. Exercer essa profissão é pôr em prática o amor ao próximo. O doente deve morrer de mãos dadas com o seu médico e este necessita de tranquilidade e de ferramentas ideais para um atendimento no qual possa oferecer o melhor do seu conhecimento, toda a sua atenção e, principalmente, todo o seu respeito. Ele precisa de tempo suficiente para conhecer o paciente, descobrir suas queixas, averiguar seu passado, seus anseios e suas angústias. E fazê-lo sair aliviado, com a perspectiva de ter seu problema solucionado.
Dar e receber assistência médica de qualidade e universal, mais do que um anseio, é um direito de todos.
* DIRETOR DA ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP), É PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE CLÍNICA MÉDICA
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