domingo, 18 de agosto de 2013

Infestação na cozinha

Um relatório da ONU diz que os insetos podem ser uma importante fonte de proteínas no futuro. Decidi prová-los

NATÁLIA SPINACÉ
18/08/2013 12h51 - Atualizado em 18/08/2013 13h27
 
 
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ESTÁ SERVIDO? Um dos grilos desidratados que usei como ingrediente em meu jantar. A textura é crocante,  e o sabor lembra uma mistura de rúcula com pistache (Foto: Dulla/ÉPOCA. Produção: Felipe Monteiro e Jairo Billafranca para Studio Bee Produções; pratos e talher: Doural; alimentos (grilo, tenébrios): Exotic Pets)
>> A comida do futuro

A ideia de levá-los para as minhas panelas surgiu de um relatório recente apresentado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês). Segundo o documento, até 2050 a população mundial terá 2 bilhões a mais de habitantes. O espaço para a criação de gado e outras fontes comuns de proteína não será suficiente para alimentar tanta gente. A saída, diz o relatório, será encontrar fontes alternativas de proteí­nas – como os insetos. Eles são mais nutritivos que a maioria das carnes que consumimos. Cem gramas de besouros contêm em média 5 gramas a mais de proteínas do que a mesma quantidade de carne de boi. A maioria dos insetos também é rica em ferro e outras vitaminas.

Se os insetos são a comida do futuro, é bom nos acostumarmos a seu gosto e textura. Mas nem pense em pegar o primeiro que passar por seu jardim. Há 1,5 milhão de espécies de insetos no mundo. Destas, apenas (gulp!) 1.662 são comestíveis. O ideal é conseguir a matéria-prima em empresas especializadas na criação de insetos. No Brasil, existem algumas. Uma delas é a mineira Nutrinsecta, que cria grilos, tenébrios, moscas e baratas para produzir ração animal. Foi lá que consegui os insetos que serviram de ingrediente para meu jantar. A empresa ainda não vende os insetos para a alimentação de humanos. Mas abre exceções para alguns chefs e curiosos que queiram experimentar. Os animais, criados em cativeiro, se alimentam de uma ração feita com soja, milho e farelo de trigo. Para poder vendê-los em grande escala, falta uma certificação do Ministério da Agricultura. Nos poucos restaurantes que servem insetos, cabe à Vigilância Sanitária municipal fiscalizar a procedência e a higiene.
>> A carne feita em laboratório

Meus grilos e tenébrios chegaram pelo correio. Vieram desidratados, em potinhos lacrados. Alguns sentiram curiosidade ao vê-los; outros não conseguiram conter o nojo. Uma colega de trabalho chegou a se assustar com os grilos e derrubou alguns no chão. Outra tentou experimentar um tenébrio. Cuspiu antes de conseguir mastigá-lo. O nojo é uma das maiores barreiras para a inclusão de insetos na dieta humana. Alguns pesquisadores já estudam maneiras de superar a aversão natural a insetos e tornar o consumo mais fácil. A ideia é transformá-los numa espécie de farinha ou em barras de cereal. s Apesar de não ser comum no Brasil, o hábito de comer insetos e seus parentes próximos existe em várias partes do mundo. Na Venezuela, é comum comer tarântulas assadas. Os aborígines australianos comem larvas de mariposa. Em países como Tailândia e China, é possível encontrar uma infinidade de espécies nos mercados de rua.
Uma técnica usada para driblar a aversão alimentar é criar um clima agradável para degustar o prato que causa nojo. Fazer uma mesa bonita e colocar sua música preferida ao fundo pode ajudar. “É uma maneira de associar a comida a um momento agradável”, diz a psicóloga Maria Augusta Mansur de Souza, especialista em reeducação alimentar. Não sabia dessas técnicas quando os insetos chegaram. Antes de testá-los nas receitas, resolvi prová-los puros, sem música nem mesa bonita. Abri o potinho e cheirei. O aroma não era estranho. Lembrava ração de cachorro. As patas, as antenas e os olhos dos grilos me assustaram um pouco. Resolvi começar pelo tenébrio, que tem o corpo mais uniforme. Como estava desidratado, a textura era crocante. O sabor não era parecido com nada que já comi. Passa muito longe de um bife ou de qualquer outra carne. Eu o definiria como uma mistura de amendoim (crocante) com rúcula (gosto de mato). O grilo tem um sabor semelhante, mas mais forte. Lembra um pouco o pistache. Eles não chegam a ser gostosos, mas também não são horríveis. A parte mais difícil de comer um inseto é ter coragem de colocá-lo na boca e mastigar. Depois disso, não fica tão assustador.
 
Viscosos, mas nutritivos (Foto: ÉPOCA)
Uma maneira de disfarçar o sabor e a aparência dos insetos é usá-los como ingredientes em outros pratos. “Quando misturados com outros alimentos, eles acabam aderindo ao sabor dos outros ingredientes e perdem seu gosto natural”, diz o chef Rossano Linassi, especialista em gastronomia com insetos. Ele é o criador das receitas que tentei reproduzir. Em seu cardápio havia canapés de barata, pizza de grilo, pão de queijo com farinha de barata, macarrão com tenébrios e grilos ao chocolate. Excluí as receitas com baratas logo de cara. Por mais que a barata criada em cativeiro seja limpinha e tenha um aspecto diferente daquela que vive no esgoto, a associação é inevitável. Escolhi o macarrão com tenébrios e, de sobremesa, os grilos com chocolate.

Para fazer as receitas, é preciso reidratar os insetos com água fervente. Eles não chegam a ficar moles ou gosmentos. Ficam apenas mais parecidos com insetos vivos. Isso me deu um pouco de aflição. Tirando a necessidade de hidratá-los, o modo de cozinhar com insetos não foge ao que estamos acostumados com frango ou carne. Surpreendentemente, achei os pratos visualmente apetitosos depois de prontos. Senti vontade de experimentar. Por estar hidratados, os insetos tinham uma textura diferente que na primeira vez. Estavam mais moles, e o sabor de “amendoim com rúcula” ficou mais suave, disfarçado pelos outros ingredientes.

Não comi o prato todo. Duas garfadas do macarrão e dois grilos cobertos por chocolate foram mais que suficientes para saciar a curiosidade. Mesmo assim, não achei os insetos tão ruins. Hoje, enquanto ainda posso escolher, jamais trocaria um bife de carne de vaca, porco ou frango por um inseto. Mas, se no futuro eles forem a única opção acessível de proteínas, acho que não passarei fome. É só uma questão de acostumar o paladar, escolher uma boa trilha sonora e preparar uma mesa bonita. 
 
Macarrão com tenébrios (Foto: Ricardo Correa/ÉPOCA)
Ingredientes:
50 g de tenébrios gigantes
1 dente de alho picado pequeno
40 g de cebola picada pequena
40g de brócolis japonês em floretes pequenos
50g de cenoura cortada em tiras fininhas
40g de cogumelos shiitake em tirinhas
40g de tomate maduro cortado em cubos pequenos
30ml de shoyu (molho de soja)
100g de macarrão udon ou espaguete grano duro
30ml de azeite de oliva
4 folhas de manjericão para decorar
Sal e pimenta a gosto

Modo de preparo:
1. Cozinhe o macarrão em 1 litro de água com um pouco de sal
2. Corte os vegetais como indicado
3. Escorra o macarrão
4. Esquente uma frigideira, acrescente o azeite e frite o alho e a cebola
5. Frite os insetos, a cenoura, o tomate, o brócolis e o shiitake. Acrescente o shoyu
6. Acrescente o macarrão já escorrido. Ponha sal e pimenta e sirva decorado com as folhas de manjericão fresco  

 
Grilos ao chocolate (Foto: Ricardo Correa/ÉPOCA)
Ingredientes:
50g de grilos inteiros
100g de chocolate meio amargo
1 folha de papel-manteiga
 
Modo de preparo:
1. Limpe os grilos, hidrate-os se preciso. Leve ao forno para tostar e deixá-los bem crocantes. Deixe esfriar
2. Derreta o chocolate em banho-maria ou no micro-ondas
3. Mergulhe os grilos no chocolate e retire com um garfo para escorrer o excesso
4. Coloque sobre o papel-manteiga e leve ao freezer para endurecer. Retire do papel e sirva 

A comida do futuro

Carne de vaca criada em laboratório, dieta à base de insetos, pão sem farinha de trigo... e outras inovações que prometem virar a mesa

MARCELO MOURA
HAMBÚRGUER SINTÉTICO A carne de células-tronco, de laboratório, não sacrifica animais  e requer menos recursos naturais; PÃO SEM TRIGO Um novo livro acusa o trigo, base da nossa dieta há milhares de anos, de fazer mal à saúde;MILK-SHAKE ANTIALÉRFICO A en; (Foto: Dulla/ÉPOCA; Produção: Felipe Monteiro e Jairo Billafranca para Studio Bee Produções. Agradecimentos: pratos e talher: Doural; bandeja: Di Pratos; embalagem fritas: Prisembalagens; alimentos (grilo e tenébrios): Exotic Pets, p)
Na segunda-feira (5), o holandês Mark Post apresentou um hambúrguer numa cozinhamontada num estúdio de TV em Londres, na Inglaterra. O escritor Josh Schonwald e a cientista Hanni Rützler, convidados a provar o hambúrguer, o acharam pouco suculento. A degustação em Londres, testemunhada por ÉPOCA, foi apenas um pequeno passo para a gastronomia. Mas pode representar um grande salto para a humanidade. O hambúrguer de Post, cientista da Universidade Maastricht, na Holanda, foi feito de 20 mil fibras musculares produzidas a partir de células-tronco, reproduzidas em laboratório. É uma carne de vaca sem vaca

A carne de vaca sem vaca, que Post pretende lançar no mercado em dez anos, poderá se tornar uma alternativa para evitar uma crise alimentar digna das previsões do economista britânico Thomas Malthus. No século XVIII, Malthus defendeu o controle de natalidade para evitar a fome mundial. Não foi necessário. Ganhos de produtividade no campo atenderam à explosão populacional. Hoje, a pecuária ocupa cerca de 30% das terras cultiváveis – situação que se agrava à medida que mais consumidores emergem socialmente. Segundo um relatório divulgado em maio pela Organização das Nações Unidas (ONU), o consumo de carne dobrará até 2050. Para atender à demanda por proteínas, a ONU defende alternativas como o consumo de insetos. Comparado a um grilo, o hambúrguer sintético pode até ser uma opção saborosa.
Há mais experimentos em laboratório, principalmente no campo da engenharia genética, para aumentar a produção de alimentos mais nutritivos e mais resistentes a pragas. Um salmão geneticamente modificado, com mais carne, está à espera da aprovação pela Food and Drug Administration (FDA), o órgão de vigilância sanitária americano. Outro produto é o leite de vacas geneticamente modificadas, que não causa reações alérgicas. Há pesquisas também para a retirada do trigo da dieta. Todas essas inovações podem conduzir a hábitos alimentares radicalmente diferentes no futuro. O hambúrguer sintético promete revolucionar a humanidade em sua raiz mais profunda. O homem se diferenciou dos demais primatas quando passou a comer carne. Segundo a hipótese mais aceita pela ciência, a ingestão de carne, uma dieta mais rica que a baseada em frutas e folhas, permitiu a um grupo de primatas adquirir as características típicas dos humanos: cérebro avantajado e postura bípede. “Comer carne permitiu a nossos ancestrais aumentar o corpo sem perder mobilidade, agilidade ou socialização”, diz a antropóloga Katharine Milton, da Universidade Berkeley, em seu artigo Uma hipótese para explicar o papel de comer carne na evolução humana. “Essa dieta pode também ter proporcionado energia necessária à expansão do cérebro.”
A primeira evidência da introdução da carne na dieta dos nossos ancestrais tem 3,4 milhões de anos. Foi localizada na Etiópia: ossos de grandes mamíferos, com golpes de pedra lascada, chamados de “golpes de açougueiro”. “Hominídeos fizeram isso”, diz David Braun, arqueólogo da Universidade da Cidade do Cabo. “Chimpanzés não reconhecem grandes animais, ou carcaças deixadas por outros predadores, como comida.” Para obter proteína de grandes animais, nossos ancestrais organizaram-se em grupos e desenvolveram ferramentas. Num sentido amplo, é o que fazemos até hoje. A relação entre o homem e sua alimentação moldou a sociedade, de tal forma que foi impossível, até hoje, conceber um sem o outro. Segundo a Bíblia, no sexto dia Deus criou o gado. Só depois, o homem.
 
GENÉTICA O salmão experimental, geneticamente modificado, é bem maior que o natural.  É uma opção para saciar a fome  no mundo (Foto: AquaBounty Technologies/AP)
A caçada em conjunto foi o primeiro arranjo social dos ancestrais do homem. “Os grupos não iam além de 40 caçadores. Mulheres dedicavam-se a cuidar da prole, a fazer artigos de couro e a manter o acampamento”, diz o livro Beef (inédito no Brasil), dos historiadores Andrew Rimas e Evan Fraser. O esfriamento da Terra, no fim do período geológico do Pleistoceno (de 2,6 milhões a 11.700 anos atrás), levou à extinção da megafauna, na qual existiam mamíferos de 3 toneladas, e pôs em xeque a organização social em caçadores nômades. Há 11 mil anos, o homem passou a controlar a produção de sua comida. São dessa época as mais antigas evidências da agricultura, encontradas na África. O naturalista Charles Darwin descreveu a evolução da agricultura em seu clássico A origem das espécies (1859): “A arte foi bem simples, seguida quase inconscientemente. Consistiu em sempre cultivar a melhor variedade conhecida. Quando uma variedade ligeiramente melhor, ao acaso, surgia, era escolhida. E assim por diante.”

Assim tem sido desde então – e as recentes inovações alimentares são mais um passo nessa longa trajetória. “Um milharal, ou qualquer campo de cultivo, é tão artificial quanto um microchip, uma revista ou um míssil”, afirma Tom Standage, editor da revista The Economist, em seu livro An edible history of humanity (Uma história comestível da humanidade, numa tradução livre). O milho que consumimos hoje nada mais é que um aprimoramento genético do teosinte, uma gramínea de poucos grãos, cobertos por uma casca dura, cultivada pelos astecas há 7 mil anos. A domesticação de animais seguiu um roteiro semelhante. Começou há 10 mil anos na África, com ovelhas e cabras, e na China, com porcos. A seleção artificial feita pelos homens levou a animais com cérebro menor, inferiores em visão e audição, menos aptos a viver sozinhos e mais dóceis. “Ao conseguir uma fonte de suprimento mais farta e confiável, a agricultura proporcionou a base para novos estilos de vida e sociedades mais complexas”, diz Standage.

A seleção das espécies mais adequadas proporcionou um salto de produtividade na alimentação humana, liberou mão de obra para outras tarefas e permitiu que a população urbana ultrapassasse a população rural no começo do século XXI. O que acontecerá com os novos alimentos alternativos sintetizados em laboratórios, cujo cultivo dispensa largas extensões territoriais? Não é de duvidar que os limites entre cidade e campo, local de produção e local de consumo de alimentos sejam novamente redefinidos. Uma nova era na alimentação humana acaba de começar.
 
Bem passado (Foto: Reuters, Getty Images, reprodução e AP)

A carne feita em laboratório

O primeiro hambúrguer feito a partir de células-tronco de vaca projeta um futuro em que a carne será produzida em pequenas fazendas urbanas

FELIPE PONTES, DE LONDRES

CARNE SINTÉTICA Uma amostra do hambúrguer do futuro. Aflições morais e ambientais estimulam seu desenvolvimento, num mundo em que a carne natural ficará mais cara (Foto: Dulla/ÉPOCA e Felipe Monteiro e Jairo Billafranca para Studio Bee Produções)
O hambúrguer de laboratório parece mais natural que os servidos em cadeias de sanduíches fast-food. Ele não leva conservantes, tem a cor forte de carne vermelha e, ao ser tostado, fica com a textura levemente irregular de um hambúrguer caseiro. Na comparação, seu congênere do McDonald’s parece pálido. Na última terça-feira, num encontro com o cientista holandês Mark Post, o criador do hambúrguer de laboratório, pude vê-lo de perto e segurá-lo por 30 segundos. Pedi para prová-lo. Post disse que a amostra que ele carregava numa caixa de isopor (uma das três preparadas por ele) não seria boa para degustação, porque estava fria e fora preparada três dias antes. Uma outra amostra – cada uma custou R$ 750 mil – foi comida por Post e por sua equipe há cerca de três meses. Uma terceira, de 140 gramas, fora grelhada na véspera pelo chef britânico Richard McGeown diante de uma plateia de cientistas e jornalistas. Ela foi dividida em dois pedaços. Metade foi guardada para os filhos de Post (uma garota de 14 anos e um garoto de 13) e para a equipe de produção do evento. A outra foi degustada por Post e por dois provadores independentes: o escritor americano Josh Schonwald, autor do livro The taste of tomorrow (O sabor do amanhã), e a cientista austríaca Hanni Rützler, especializada em nutrição.

Hanni disse que o hambúrguer tinha o gosto “intenso”, mas podia ser mais “suculento”, apesar da “consistência impressionante”. Schonwald disse que “a sensação da mordida é a mesma de um hambúrguer comum”. “Antes de testá-lo, imaginava que a textura seria estranha, mas ela é familiar como a de um hambúrguer normal. Imaginava também que o gosto seria repulsivo, mas ele me pareceu neutro”, afirmou a ÉPOCA. O que faltou? Segundo Schonwald, “gordura”. “A carne me pareceu extremamente magra. Isso seduz pessoas em busca de proteínas sem gordura”, disse. “Mas, para carnívoros como eu, a gordura teria dado ao hambúrguer de laboratório mais sabor.”
Post reconhece esse problema. Ele trabalha para produzir pedaços de carne com vasos sanguíneos, para incrementar o sabor de seu hambúrguer. “As melhorias levarão dez anos, até que ele possa ser vendido”, afirmou. Carnes com corte para churrasco, como picanha ou alcatra, certamente levarão mais tempo. Post prevê que “chegará uma hora em que poderemos criar o que quisermos, até carne de pinguim”.

Professor de fisiologia na Universidade de Maastricht, na Holanda, Post levou cinco anos para criar o hambúrguer de laboratório, desenvolvido a partir de células-tronco retiradas da região do pescoço da vaca (leia o quadro na página 72). Desde maio de 2010, a pesquisa contou com o apoio financeiro de Sergey Brin, o bilionário fundador do Google. Nos últimos anos, Brin fundou também a empresa de testes genéticos 23andMe, estudou a viabilidade de fazer mineração em asteroides, investiu na empresa de voo espacial privado Space Adventures e desenvolve, por meio do Google, carros que dirigem sozinhos. Num vídeo, Brin disse que apoiou a pesquisa, principalmente por uma preocupação com o bem-estar animal. “As pessoas têm uma imagem errada sobre a produção moderna de carne, ao imaginar fazendas impecáveis com poucos animais”, disse. “Não me sinto confortável em ver como essas vacas são realmente criadas.”
Aflições morais com o sofrimento de animais e ecológicas, por causa do impacto da produção de carne no meio ambiente, são dois dos principais estímulos para o desenvolvimento da carne de laboratório. De acordo com um relatório de 2013 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, em inglês), a demanda por carne, impulsionada pela ascensão de uma classe média em países emergentes como China e Brasil, deverá dobrar até 2050. Ao mesmo tempo, a criação de animais para alimentação humana já é responsável pela emissão de 18% dos gases poluentes no mundo, consome 27% da água que usamos e ocupa 33% das terras aráveis do planeta. Um aumento nesses números poderá, portanto, ter consequências drásticas para o planeta. Uma opção é estimular o consumo de fontes alternativas de proteína como os insetos (leia mais na página 74). Mas a carne ainda é o produto proteico mais desejado do mundo. Imagine um pai de família chinês que nunca pôde, mas agora tem meios de colocar carne no prato dele e do filho.
>> A dieta do trigo

Na semana passada, a Peta (Pessoas para o tratamento ético dos animais, na tradução do inglês), uma das maiores organizações em defesa dos animais no mundo, divulgou um comunicado em apoio às pesquisas de Post. “A carne de laboratório pode aliviar todos os problemas éticos com o sofrimento de animais e a poluição do planeta”, diz a filósofa Cornelia van der Weele, da Universidade Wageningen, na Holanda. Para ela, a carne de laboratório apresenta também pelo menos uma vantagem em relação aos alimentos geneticamente modificados. “Como uma carne in vitro causa estranheza por si só, os cientistas usam nela células normais, que não são manipuladas”, diz. Hanna Tuomisto, pesquisadora do Instituto para o Ambiente e Sustentabilidade, na Itália, aponta outros benefícios. “Ao ser produzida em condições controladas, a carne de laboratório pode evitar o avanço de doenças animais”, afirma. Num ambiente asséptico de um laboratório, a carne tem menos chance de ser infectada com bactérias comuns em fazendas. E o produto em si não teria antibióticos, usados abundantemente na criação dos animais.

Segundo os cálculos de Post, uma célula-tronco de vaca poderá gerar, no futuro, 20.000 toneladas de carne, volume suficiente para produzir 175 milhões de hambúrgueres – quantidade que exige hoje, pelos métodos naturais, o abate de mais de 440 mil vacas. Evidentemente, dada a incipiência de muitos aspectos de uma tecnologia recém-desenvolvida, tal cenário ainda parece ficção. O que pode torná-lo uma realidade nem tão remota é uma questão econômica. É certo que a carne que conhecemos e consumimos ficará mais cara no Brasil e no mundo. Em países como Grã-Bretanha e Estados Unidos, a carne de qualidade já é considerada um produto para os mais abastados. Cedo ou tarde, isso acontecerá também no Brasil, invertendo a queda de preços das últimas décadas. Segundo o estudo Pecuária brasileira: produtividade e efeito poupa-terra, publicado em 2011 pela Embrapa, a carne valia, em junho de 2010, em São Paulo, 30% do valor que tinha em 1973. “O valor relativo da carne caiu em relação à renda do trabalhador, mas a tendência é que ela fique cada vez mais cara, porque a demanda será maior que a oferta”, diz Fernando Sampaio, diretor executivo da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne. “Principalmente a bovina, cuja produção é mais demorada.”

O sonho de Post é conseguir igualar algum dia os preços de seu hambúrguer e do natural, num mundo em que pequenas fazendas urbanas transformarão a produção artificial de carne em algo caseiro e ecológico. “No futuro, talvez comeremos a carne de laboratório no dia a dia e guardaremos a carne de verdade para ocasiões especiais, como festas e feriados”, diz a filósofa Cornelia van der Weele. Um cenário semelhante é contemplado no primeiro capítulo do livro de Schonwald, o escritor americano que provou o hambúrguer de laboratório. Nele, Schonwald imagina um cliente em 2035, encomendando a carne do animal que quiser no restaurante com o melhor “biorreator” da cidade. Hoje, isso ainda pode parecer futurismo barato. Mas essa é uma acusação que poderia ter sido feita também a Winston Churchill em 1931, quando ele publicou um artigo na revista britânica The Strand. O artigo dizia que, “em 50 anos, nós escaparemos do absurdo de criar uma galinha inteira para comer seu peito ou asa, porque cultivaremos essas partes separadamente”. Mais de 80 anos depois, a previsão de Churchill, num presente em que os primeiros hambúrgueres de laboratório começam a ser produzidos, já não soa absurda. 
 
Um hambúrguer cultivado (Foto: Otávio Burin e Pedro Schimidt)

A dieta do trigo

Um novo livro acusa o trigo de favorecer o diabetes, problemas do coração e obesidade. Faz sentido viver sem ele?

NATÁLIA SPINACÉ

"O pão nosso de cada dia nos dai hoje.” Está na Bíblia. O pão é um alimento sagrado. Os judeus celebram com matzá, um pão que não leva fermento, o amargor da fuga do Egito. Os cristãos colocam o pão de Santo Antônio em latas de mantimentos para garantir fartura. Essas tradições mostram como o trigo é um dos grãos mais consumidos no mundo. Não é de estranhar que a dieta defendida pelo cardiologista americano William Davis dê o que falar entre médicos, nutricionistas e loucos por dietas. Em seu livro Barriga de trigo (Editora Martins Fontes), Davis propõe que o trigo seja banido. Na opinião dele, esse alimento milenar é hoje responsável pelo agravamento de males como obesidade, diabetes, doenças do intestino e do coração. Seu livro ficou entre os dez mais vendidos na lista do jornal The New York Times por mais de 50 semanas.

 Como o trigo, presente na dieta da humanidade há mais de 8 mil anos, pode contribuir para tantas doenças sem ter levantado suspeitas durante todo esse tempo? Davis afirma que o problema começou com as mudanças genéticas que ele sofreu nos últimos 50 anos, para aumentar a produtividade e a resistência a pragas. Uma conquista que deu o Prêmio Nobel da Paz, na década de 1970, ao geneticista Norman Borlaug. Segundo Davis, os cruzamentos de variedades de trigo para conseguir cereais com características desejadas pela indústria (como tamanho ideal para as colheitadeiras ou elasticidade da massa) geraram plantas não tão saudáveis. Para Davis, as transformações mais nocivas do trigo atual são mudanças em três nutrientes essenciais: uma proteína chamada aglutinina, outra batizada de gliadina e um tipo de amido típico do cereal. Ele atribui a elas a responsabilidade por uma série de malefícios à saúde.

O primeiro efeito nocivo do trigo, diz ele, é causado por seu tipo de amido, mais rapidamente digestível do que o amido de outros alimentos, como batatas ou bananas. Isso explica por que, para quantidades iguais, a glicose no sangue sobe mais depois de consumirmos alimentos com trigo. Um estudo feito na Universidade de Toronto, no Canadá, mostrou que a capacidade do trigo de elevar o índice glicêmico é maior que a dos doces. Duas fatias de pão integral elevam mais as taxas de glicose no sangue que uma barra de chocolate. Altas taxas de glicose aumentam o risco de diabetes e obesidade.

Pensando nisso, o urologista gaúcho José Carlos Souto receitou uma dieta para o administrador de empresas Edis Doyle, de 57 anos. Há um ano e meio, Edis pesava 105 quilos. Seus exames de sangue mostravam índices elevados de colesterol, triglicerídeos e glicose. A cintura media 103 centímetros. Ele tinha inchaço e dores nos tornozelos. Edis aderiu à dieta do trigo. “Parei de comer pães, doces e massas”, diz. Ele não incluiu atividades físicas em sua rotina. Só mudou a alimentação. Cinco meses depois, perdera 19 quilos e 9 centímetros de cintura. Nos exames de sangue, os índices, antes elevados, baixaram. O inchaço e a dor nos tornozelos também desapareceram. “Hoje, se como algum tipo de massa, me sinto mal”, diz. Edis inspirou o filho, Cleber Doyle, de 32 anos. Em cinco meses seguindo a dieta do pai, Cleber perdeu 25 dos 130 quilos.
 
EM FAMÍLIA O administrador de empresas Edis Doyle e seu filho, Cleber. Os dois perderam peso excluindo o trigo do cardápio (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA)
Além de engordar, o amido do trigo também pode, segundo Davis, trazer riscos ao coração. “O excesso de açúcar no sangue, causado pelo amido do trigo, é capaz de fazer com que partículas de gordura grandes sejam quebradas e fiquem menores”, diz Raul Dias dos Santos Filho, cardiologista do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo. “Essas partículas pequenas de gordura se acumulam nas artérias.”

O segundo aspecto perigoso do trigo é seu poder viciante. Uma pesquisa feita pela Sociedade Americana de Química revelou que uma das proteínas condenadas por Davis, a gliadina, ao atingir o sistema nervoso, provoca uma leve euforia e sensação de prazer. Isso aumenta a sensação de gula e, segundo Davis, gera uma dependência no consumo de mais alimentos com trigo.

O trigo também pode afetar o intestino. Esse risco já é conhecido para quem tem alergia ao glúten (uma das proteínas do cereal), os celíacos. Para Davis, todas as pessoas, celíacas ou não, sofrem efeitos semelhantes por causa das duas proteínas citadas por Davis: gliadina (que também entra na composição do glúten) e aglutinina. As duas, segundo Davis, agem de forma semelhante. Aumentam o risco de lesões nas paredes do intestino, e abrem caminho para que substâncias indesejadas cheguem à corrente sanguínea. Essas lesões também atrapalham a absorção de vitaminas e minerais. Num estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, cientistas expuseram celíacos e não celíacos aos efeitos das duas substâncias. Nos dois casos, a permeabilidade do intestino fora alterada. Nos não celíacos, as lesões foram menores, mas também ocorreram.

Será que o macarrão de domingo está condenado? A tese de Davis ainda é controversa. Médicos e agrônomos afirmam que o cruzamento de variedades de trigo não causa mudanças significativas no alimento. “Trigo com trigo só pode dar trigo”, diz Eduardo Caierão, pesquisador da Embrapa Trigo. “Não há nenhuma evidência comprovada de que a mistura de variedades transformou o trigo em algo nocivo”, afirma Alessio Fasano, fundador do Centro de Pesquisa Celíaca do Hospital Infantil de Massachusetts, nos EUA, referência em alergia a glúten. “O trigo deve ser banido da alimentação de quem tem alguma intolerância ou sensibilidade ao glúten. Mas não há motivo para tirá-lo da dieta de quem não é celíaco”, diz John Swartzberg, médico da faculdade de saúde pública da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos EUA.

Há ainda algumas questões sem respostas na tese de Davis. O trigo é manipulado há milênios, desde os primórdios da agricultura. Por que só as alterações modernas tiveram efeito ruim? A revolução agrícola, com técnicas modernas de melhoramento genético, também alterou outros alimentos, como o milho e o arroz. Qual foi seu efeito sobre eles? Como é possível afirmar que os bons resultados obtidos por Davis com os pacientes não sejam apenas efeito de uma dieta mais equilibrada? Ainda faltam estudos comparando grupos de consumidores por longos anos, com e sem trigo, para confirmar as suspeitas. O próprio Davis reconhece que ainda não há pesquisas suficientes para derrubar as recomendações médicas que atestam os benefícios dos grãos de trigo integrais. Mesmo que Davis e seus seguidores estejam certos, uma dieta sem trigo não é bolinho. Como ocorre com qualquer mudança radical, é preciso acompanhamento médico e avaliação caso a caso. Tirar o trigo do prato pode não ser para qualquer um.