domingo, 18 de agosto de 2013

A dieta do trigo

Um novo livro acusa o trigo de favorecer o diabetes, problemas do coração e obesidade. Faz sentido viver sem ele?

NATÁLIA SPINACÉ

"O pão nosso de cada dia nos dai hoje.” Está na Bíblia. O pão é um alimento sagrado. Os judeus celebram com matzá, um pão que não leva fermento, o amargor da fuga do Egito. Os cristãos colocam o pão de Santo Antônio em latas de mantimentos para garantir fartura. Essas tradições mostram como o trigo é um dos grãos mais consumidos no mundo. Não é de estranhar que a dieta defendida pelo cardiologista americano William Davis dê o que falar entre médicos, nutricionistas e loucos por dietas. Em seu livro Barriga de trigo (Editora Martins Fontes), Davis propõe que o trigo seja banido. Na opinião dele, esse alimento milenar é hoje responsável pelo agravamento de males como obesidade, diabetes, doenças do intestino e do coração. Seu livro ficou entre os dez mais vendidos na lista do jornal The New York Times por mais de 50 semanas.

 Como o trigo, presente na dieta da humanidade há mais de 8 mil anos, pode contribuir para tantas doenças sem ter levantado suspeitas durante todo esse tempo? Davis afirma que o problema começou com as mudanças genéticas que ele sofreu nos últimos 50 anos, para aumentar a produtividade e a resistência a pragas. Uma conquista que deu o Prêmio Nobel da Paz, na década de 1970, ao geneticista Norman Borlaug. Segundo Davis, os cruzamentos de variedades de trigo para conseguir cereais com características desejadas pela indústria (como tamanho ideal para as colheitadeiras ou elasticidade da massa) geraram plantas não tão saudáveis. Para Davis, as transformações mais nocivas do trigo atual são mudanças em três nutrientes essenciais: uma proteína chamada aglutinina, outra batizada de gliadina e um tipo de amido típico do cereal. Ele atribui a elas a responsabilidade por uma série de malefícios à saúde.

O primeiro efeito nocivo do trigo, diz ele, é causado por seu tipo de amido, mais rapidamente digestível do que o amido de outros alimentos, como batatas ou bananas. Isso explica por que, para quantidades iguais, a glicose no sangue sobe mais depois de consumirmos alimentos com trigo. Um estudo feito na Universidade de Toronto, no Canadá, mostrou que a capacidade do trigo de elevar o índice glicêmico é maior que a dos doces. Duas fatias de pão integral elevam mais as taxas de glicose no sangue que uma barra de chocolate. Altas taxas de glicose aumentam o risco de diabetes e obesidade.

Pensando nisso, o urologista gaúcho José Carlos Souto receitou uma dieta para o administrador de empresas Edis Doyle, de 57 anos. Há um ano e meio, Edis pesava 105 quilos. Seus exames de sangue mostravam índices elevados de colesterol, triglicerídeos e glicose. A cintura media 103 centímetros. Ele tinha inchaço e dores nos tornozelos. Edis aderiu à dieta do trigo. “Parei de comer pães, doces e massas”, diz. Ele não incluiu atividades físicas em sua rotina. Só mudou a alimentação. Cinco meses depois, perdera 19 quilos e 9 centímetros de cintura. Nos exames de sangue, os índices, antes elevados, baixaram. O inchaço e a dor nos tornozelos também desapareceram. “Hoje, se como algum tipo de massa, me sinto mal”, diz. Edis inspirou o filho, Cleber Doyle, de 32 anos. Em cinco meses seguindo a dieta do pai, Cleber perdeu 25 dos 130 quilos.
 
EM FAMÍLIA O administrador de empresas Edis Doyle e seu filho, Cleber. Os dois perderam peso excluindo o trigo do cardápio (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA)
Além de engordar, o amido do trigo também pode, segundo Davis, trazer riscos ao coração. “O excesso de açúcar no sangue, causado pelo amido do trigo, é capaz de fazer com que partículas de gordura grandes sejam quebradas e fiquem menores”, diz Raul Dias dos Santos Filho, cardiologista do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo. “Essas partículas pequenas de gordura se acumulam nas artérias.”

O segundo aspecto perigoso do trigo é seu poder viciante. Uma pesquisa feita pela Sociedade Americana de Química revelou que uma das proteínas condenadas por Davis, a gliadina, ao atingir o sistema nervoso, provoca uma leve euforia e sensação de prazer. Isso aumenta a sensação de gula e, segundo Davis, gera uma dependência no consumo de mais alimentos com trigo.

O trigo também pode afetar o intestino. Esse risco já é conhecido para quem tem alergia ao glúten (uma das proteínas do cereal), os celíacos. Para Davis, todas as pessoas, celíacas ou não, sofrem efeitos semelhantes por causa das duas proteínas citadas por Davis: gliadina (que também entra na composição do glúten) e aglutinina. As duas, segundo Davis, agem de forma semelhante. Aumentam o risco de lesões nas paredes do intestino, e abrem caminho para que substâncias indesejadas cheguem à corrente sanguínea. Essas lesões também atrapalham a absorção de vitaminas e minerais. Num estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, cientistas expuseram celíacos e não celíacos aos efeitos das duas substâncias. Nos dois casos, a permeabilidade do intestino fora alterada. Nos não celíacos, as lesões foram menores, mas também ocorreram.

Será que o macarrão de domingo está condenado? A tese de Davis ainda é controversa. Médicos e agrônomos afirmam que o cruzamento de variedades de trigo não causa mudanças significativas no alimento. “Trigo com trigo só pode dar trigo”, diz Eduardo Caierão, pesquisador da Embrapa Trigo. “Não há nenhuma evidência comprovada de que a mistura de variedades transformou o trigo em algo nocivo”, afirma Alessio Fasano, fundador do Centro de Pesquisa Celíaca do Hospital Infantil de Massachusetts, nos EUA, referência em alergia a glúten. “O trigo deve ser banido da alimentação de quem tem alguma intolerância ou sensibilidade ao glúten. Mas não há motivo para tirá-lo da dieta de quem não é celíaco”, diz John Swartzberg, médico da faculdade de saúde pública da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos EUA.

Há ainda algumas questões sem respostas na tese de Davis. O trigo é manipulado há milênios, desde os primórdios da agricultura. Por que só as alterações modernas tiveram efeito ruim? A revolução agrícola, com técnicas modernas de melhoramento genético, também alterou outros alimentos, como o milho e o arroz. Qual foi seu efeito sobre eles? Como é possível afirmar que os bons resultados obtidos por Davis com os pacientes não sejam apenas efeito de uma dieta mais equilibrada? Ainda faltam estudos comparando grupos de consumidores por longos anos, com e sem trigo, para confirmar as suspeitas. O próprio Davis reconhece que ainda não há pesquisas suficientes para derrubar as recomendações médicas que atestam os benefícios dos grãos de trigo integrais. Mesmo que Davis e seus seguidores estejam certos, uma dieta sem trigo não é bolinho. Como ocorre com qualquer mudança radical, é preciso acompanhamento médico e avaliação caso a caso. Tirar o trigo do prato pode não ser para qualquer um. 

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