sábado, 22 de junho de 2013

A multidão desgovernada e a causa da saúde

Não se amplia um direito social com violência e autoritarismo. Nem com frases feitas do tipo “se a roubalheira acabar, a saúde melhora”

CRISTIANE SEGATTO
 
A redução das tarifas de transporte público aconteceu, mas ela não foi suficiente para conter a insatisfação “contra tudo o que está aí”. Ontem (21), mais de um milhão de pessoas voltaram a ocupar as ruas em cerca de cem cidades. No início da semana, um comentário postado nas redes sociais dava o tom da frustração popular: “São R$ 0,20, mas pode chamar de gota d’água”.

As manifestações, ainda que sem foco objetivo, eram um acontecimento auspicioso enquanto representavam a mobilização pacífica em torno do desejo de construir um Brasil melhor. Multidões foram às ruas para exigir mais saúde, mais educação, transporte público decente, menos corrupção, mais liberdade de investigação sobre desmandos cometidos por autoridades. A semana começou bem e terminou muito mal. A noite de fúria e destruição vivida nas principais capitais adicionou às manifestações dois novos ingredientes que nenhum bem podem fazer à sociedade: violência e índole autoritária.
Ninguém entendeu direito que fenômeno é esse que estamos vivendo. De onde isso veio, para onde vai. Podemos ter uma única certeza: multidões desgovernadas que desprezam instituições conquistadas a tanto custo podem levar o Brasil ao pior dos mundos. Para ampliar direitos sociais precisamos de democracia. Não se avança com autoritarismo nem com frases feitas do tipo: “se a roubalheira acabar, a saúde melhora”. É preciso ir além da indignação vazia. É preciso fazer contas, analisar orçamentos, confrontar a condição brasileira com a de outros países. É preciso refletir e debater no melhor espírito democrático.
Às vésperas das últimas eleições municipais, a saúde era a principal preocupação dos brasileiros, segundo uma pesquisa do Instituto Ibope. Só depois apareciam segurança pública e educação. Na esperança de contribuir para o debate lúcido e esclarecido, compilei alguns fatos e alguma análise sobre a saúde brasileira:

O QUE HÁ DE ERRADO COM A SAÚDE NO BRASIL?
A saúde brasileira enfrenta três grandes problemas: O primeiro é conviver com doenças superadas pelos países ricos nos anos 60, como diarreia, tuberculose e hanseníase.

O segundo é termos recursos comparáveis aos que as nações desenvolvidas gastavam nos anos 80, cerca de 8% do PIB – uma porcentagem insuficiente para acompanhar a inflação na área da medicina. Como ela aumentou muito nos últimos anos, hoje a França emprega em saúde mais de 11% do PIB. Os Estados Unidos empregam 15%.

O terceiro problema é a demanda pela medicina do século XXI, cujas drogas, tratamentos e exames sofisticados custam mais que o sistema de saúde é capaz de pagar. Se o país continuar investindo 8% do PIB em saúde, isso será suficiente apenas para manter o padrão de atendimento à saúde de que dispomos hoje. Para melhorar a qualidade dos serviços e bancar novas tecnologias e drogas mais caras, será necessário gastar mais.

FALTA DINHEIRO OU FALTA GESTÃO?
É preciso gastar mais e gastar melhor. O gasto brasileiro em saúde por habitante é semelhante ao do Chile, mas a mortalidade infantil no Brasil é quase o dobro da chilena. É apenas um dos sinais de que o dinheiro que o Brasil tem hoje para gastar em saúde poderia ser mais bem utilizado. Algumas ideias para melhorar a saúde:
• Organizar e fortalecer a rede básica

Cerca de 90% dos problemas de saúde que a população enfrenta podem ser resolvidos na rede básica. São males corriqueiros que podem ser tratados pelo médico de família ou nos postos de saúde. No Brasil, a rede básica é frágil. É por isso que, quando adoece, o brasileiro corre para o hospital. Isso é péssimo. O problema é empurrado para o nível de cima (o dos hospitais), que tem custos muito mais elevados. A fragilidade da rede básica fica evidente quando ocorre uma epidemia. A dengue é um exemplo clássico. A cada epidemia, os hospitais não dão conta da demanda extra e o atendimento das doenças mais graves fica prejudicado.

• Reduzir iniquidades

Mais de 45 milhões de pessoas têm plano de saúde no Brasil. Em geral, elas usam o plano apenas para consultas e internações de custo baixo ou moderado. Quando precisam de um serviço caro e de alta complexidade (transplantes ou drogas caríssimas contra o câncer, por exemplo), elas recorrem ao SUS. Até aí, nenhum problema. O SUS é um sistema de saúde universal. A classe média tem direito a ele como qualquer outro estrato social.
O injusto é afirmar que os remediados e os ricos são duplamente penalizados porque pagam altos impostos mas nunca usam os serviços públicos de saúde. Usamos sim. Quem nunca pisou num posto de saúde recorrerá ao SUS quando uma doença grave se instalar. Exigirá remédios caros com ações judiciais, receberá um fígado ou um rim novo sem gastar um centavo, tomará drogas imunossupressoras para o resto da vida. Sem colocar a mão no bolso e, em muitos casos, sem sair de casa. É só aguardar o motoboy contratado pelo SUS entregar o remédio em casa.

Os beneficiários dos planos de saúde têm todo o direito de usar o serviço público, mas é preciso deixar claro que, ao fazer isso, eles estão subsidiando os convênios. Como o orçamento público é limitado e os custos da medicina de ponta só crescem, o governo destina cada vez mais dinheiro para atender a classe média que tem plano de saúde. É por isso que há tanto tempo o Ministério da Saúde tenta ser ressarcido pelos planos de saúde quando os clientes deles são atendidos no SUS.
Em 2003, os gastos per capita do SUS no Nordeste (a região mais pobre do país) eram de R$ 168 por ano. No Sudeste (a região mais rica) eram de R$ 250. Nos últimos anos, a situação se manteve mais ou menos assim. A dependência do SUS no Nordeste é pelo menos o dobro da verificada no Nordeste. Quem mais precisa, menos recursos recebe. Para reduzir a injustiça, é preciso garantir melhor distribuição regional dos recursos públicos.

QUAL É O SEGREDO DAS CIDADES ONDE A SAÚDE É BOA?
A receita do sucesso cabe em duas linhas, mas pouquíssimos municípios conseguem colocá-la em prática. A análise dos que conseguem revela que a qualidade independe do porte do município. Cidades minúsculas ou capitais podem oferecer serviços de alto nível se estiverem dispostas a isso. Essa é uma decisão política e orçamentária. A população não deve se iludir. Orçamentos são finitos. Se uma área receber mais dinheiro, outra área receberá menos. Se a população quiser mais investimentos nas duas áreas, terá que aceitar o aumento de impostos. Para melhorar a saúde de um município, o bom prefeito deve ter duas obsessões:
Número 1: garantir que todos recebam atenção básica de qualidade – aquele primeiro atendimento, muitas vezes preventivo, nos postos de saúde ou em domicílio. Número 2: facilitar o acesso a especialistas e exames, sempre que necessário.

COMO MELHORAR A SAÚDE?
Em outubro do ano passado, visitei duas cidades consideradas campeãs de saúde, segundo o Índice de Desempenho do SUS, um levantamento detalhado feito pela primeira vez pelo Ministério da Saúde, com base em 24 indicadores.
Fui conhecer de perto o trabalho feito em Vitória (capital do Espírito do Santo) e em Arco-Íris, um município de 1,9 mil habitantes no interior de São Paulo. Segundo o IDSUS, Arco-Íris oferece o melhor atendimento de saúde do Brasil.Nenhum sistema de saúde é perfeito, mas os moradores reconhecem quando há avanços. As melhorias conquistadas por essas duas cidades podem ser resumidas em quatro lições:

• Reforçar a atenção básica
Em Vitória, as equipes que trabalham nos postos resolvem a maior parte dos problemas de saúde sem que o paciente precise se deslocar. Nas áreas de risco, os profissionais que visitam domicílios alcançam 100% das famílias. No restante da cidade, a cobertura é de 80% da população que depende do SUS. Dessa forma, a capital capixaba conseguiu receber nota 10 no indicador que avalia internações por causas evitáveis, como hipertensão, diabetes e problemas respiratórios.

• Garantir atendimento especializado
Com apenas 1,9 mil habitantes, Arco-Íris não tem estrutura para oferecer consultas com especialistas. Nem por isso os moradores ficam sem atendimento. Eles são encaminhados para cidades vizinhas. Para conseguir uma consulta não-emergencial com ortopedista ou reumatologista, os moradores esperam cerca de um mês. Um prazo longe do ideal, mas bastante razoável quando comparado com muitos planos de saúde privados.

Para reduzir os custos dos exames sofisticados, Arco-Íris firmou um consórcio com sete cidades vizinhas para comprar pacotes de consultas e exames. O preço dos procedimentos pode cair à metade. A prova de que deu certo foi a nota 10 no quesito “acesso à mamografia”.

• Valorizar os profissionais
Vitória investiu em concursos públicos e num plano de cargos e salários. Hoje, 96% dos profissionais são efetivos. A secretaria de saúde criou um programa de incentivo ao desempenho nas unidades de saúde. A proposta prevê o pagamento de bônus para os envolvidos na melhoria dos indicadores de saúde da população de cada área.

Em outubro, a médica de Arco-Íris recebia um salário de R$ 17 mil brutos por mês, bem mais que os R$ 6.500 do prefeito da cidade. Mais que o salário, as condições de trabalho garantiam a permanência da médica Liliana Lisboa Sanches na cidade. “Se preciso pedir um tomografia com urgência, consigo no mesmo dia. Nunca ouvi um ‘não’ da prefeitura.

Histórias como essa demonstram a fragilidade da ideia de que basta contratar médicos no Exterior para garantir o atendimento da população em localidades distantes. Não faltam médicos no Brasil. Faltam condições de trabalho. A nacionalidade dos profissionais pouco importa. Um brasileiro, um cubano, um português enviado a uma cidade distante sem ter o básico pouco poderá fazer pela população. Em pouco tempo estará frustrado, estressado e fará o caminho de volta.
* Reconhecer fraquezas
Só melhora as condições de vida da população, o município que reconhece suas fraquezas. Só assim é possível avançar. Em outubro, ouvi a seguinte declaração de Luiz Carlos Reblin, secretário de saúde de Vitória: “Não somos perfeitos. Temos um grave problema nas urgências e emergências.” E mais adiante: “A população não entende como somos a melhor capital no IDSUS se há gente nos corredores dos hospitais.”

Esse é um problema que a cidade ainda não conseguiu resover. A demanda é grande. A oferta de serviços é pequena. No Espírito santo, há um deficit de 360 leitos de UTI. O Estado compra leitos no setor privado, mas os hospitais particulares também trabalham no limite. Apesar de ter sido considerada a melhor do país em saúde, Arco-Íris quer mais. A ambição, agora, é ter um pediatra e um mini pronto-socorro.

Quem diz que o SUS é péssimo tem razão apenas em parte. O SUS não é uniformemente ruim. Ele é desigual e injusto. Entender essas desigualdades e reconhecer as injustiças é o primeiro passo para reproduzir as boas experiências e consertar o que vai mal. Assim como a população de Arco-Íris, eu também tenho uma ambição. Minha ambição é constatar que a histórica energia mobilizadora das pessoas que marcharam em paz ajudou o Brasil a avançar – e não a retroceder